José Henrique Paiva dos Reis Lisboa é conhecido nos meios de teatro por Taubaté. Atuou no Grupo de Teatro da Cidade, em santo André noa anos de 1970. |
|
Depoimento de JOSÉ HENRIQUE PAIVA DOS REIS LISBOA (TAUBATÉ), 59 anos.
IMES – Universidade Municipal de São Caetano do Sul, 08 de julho de 2005.
Entrevistadores: Vilma Lemos e Tiago Magnani
Pergunta:
Comece falando a data e o local de seu nascimento.
Resposta:
Nasci em Ilha Grande, em 02 de setembro de 1945.
Pergunta:
E esse apelido Taubaté?
Resposta:
Eu saí da Ilha Grande com um ano de idade e morei em Taubaté de 1 ano até os 15 anos. Quando mudei para Santo André peguei esse apelido Taubaté.
Pergunta:
Fale um pouco da sua infância, dos seus pais, da família.
Resposta:
Meus pais eram nordestinos. Minha mãe era alagoana, meu pai era pernambucano. Meu pai era funcionário público e minha mãe era de prendas domésticas. Meu pai era funcionário público, quando se aposentou em Taubaté, trabalhava na Coletoria Federal, como era chamada a Delegacia da Fazenda, essas coisas. Meu pai trabalhava lá e quando se aposentou veio para Santo André e veio toda a família. Minha infância foi em Taubaté, aquela infância de interior, de estudar no grupo escolar, clube, piscina, passear na praça, cinema aos domingos. Aquela coisa de interior. Jogar bola na rua. Algum tempo atrás fui até Taubaté e a rua em que eu jogava bola parecia um estádio e hoje você dá três passos e atravessa a rua.
Pergunta:
Quantos irmãos?
Resposta:
Nós éramos nove, agora somos sete irmãos. Dos nove, três, quatro nasceram em Taubaté. Tenho uma irmã alagoana, uma irmã mato-grossense, eu e outra irmã somos de Ilha Grande. Meu pai, antes da coletoria, trabalhava na saúde pública e era transferido.
Pergunta:
E a escolarização, as primeiras letras?
Resposta:
Eu fiz até o ginásio. Sou autodidata, com o teatro eu abandonei tudo, porque queria fazer só teatro amador. Largava até emprego para fazer teatro. Só fiz até o ginásio.
Pergunta:
Esse ginásio foi em Taubaté?
Resposta:
Em Taubaté eu comecei e terminei em Santo André.
Pergunta:
Quanto a sua vinda para Santo André, veio com a família?
Resposta:
É uma coisa esquisita, porque fui trocada a minha amizade de infância, de vizinhos. Cheguei aqui aos 15 anos, quando isso começa a se solidificar, vai para a juventude, a descoberta com os amigos de infância. Aos 15 anos mudei e peguei uma outra amizade, que não era de infância, então foi uma coisa meio esquisita, meio truncada. Mas tive amigos em Taubaté que, infelizmente, não tivemos muito contato, e ficaram por lá. E as amizades mais solidificadas foram em Santo André.
Pergunta:
Para qual lugar de Santo André vocês vieram?
Resposta:
A gente foi morar na Rua Senador Fláquer, perto do Largo da Estátua, do comércio.
Pergunta:
Como você se lembra desse local, como era?
Resposta:
Onde eu fui morar era muito interessante, porque eu vinha do interior e fui morar num prédio. Apesar de ter três andares, era um prédio. Era perto do centro e tinha poucos prédios. Tinha o Banco de Crédito Real de Minas Gerais em frente. Aliás, a família do gerente foi que me colocou o apelido de Taubaté, um menino de quatro anos. Eu me lembro que em 1960 houve um levante no presídio de Taubaté, e teve mortes, uma coisa horrível que repercutiu muito nacionalmente, e era uma curiosidade. Hoje não é novidade levante em presídio. Naquela época o gerente, o Sr. Mourão, brincava comigo que eu tinha fugido do presídio e tinha dois amigos que tinha um irmãozinho e ele ouvia falar que tinha fugido. Um dia fui chamar o Miguel e veio o Fred, o menino. Perguntei do Miguel ele falou: Miguel, o Taubaté está aí. E todo mundo riu e nunca mais saiu o Taubaté. A cidade era assim, a gente conhecia o gerente do banco em frente, a família que morava em cima, porque eram aqueles prédios de dois andares, em cima mora a família do gerente do banco, o banco era embaixo. A gente morava bem perto do Largo da Estátua, da pracinha, da rua central, ia ao cinema, tinha o footing na Oliveira Lima. Santo André tinha aquelas divisões de clubes, Ocara, Panelinha, Primeiro de Maio e Aramaçan. O Primeiro de Maio já juntava as facções, Ocara, Panelinha, Cartolinha. A turma do Panelinha se reunia num bar chamado Quitandinha, perto da Igreja do Carmo, o pessoal do Ocara se reunia embaixo do clube, em uma padaria, o Cartolinha era numa padaria perto do Largo da Estátua. E tinha aqueles grupinhos. Era engraçado porque eu tinha amizade com todo mundo, com todos os grupos.
Pergunta:
Isso já era em 1960?
Resposta:
Em 1960 para frente. Estou avançando as histórias. No começo foi a história do apelido, depois eu fiz amizade com essa gente, com esse pessoal. No Primeiro de Maio Futebol Clube eu comecei a fazer amizade com essas pessoas e de repente esse grupo resolveu fazer, comandados pelo Augusto Maciel, um show, como tinha no Ocara, que tinha um show todo primeiro sábado de cada mês, e a gente resolveu fazer no Primeiro de Maio, onde foi formado o grupo amador do Primeiro de Maio. A gente fazia, uma vez por mês, shows. A gente sentava à mesa, tomando cerveja, e escrevíamos esquetes e daí saiu o show. Do show a gente saiu para uma montagem do Zumbi, que não era a peça toda, mas partes. Aí fomos para O Santo Milagroso.
Pergunta:
Como se chamava esse show?
Resposta:
Chamava Showriso da Mimosa. A Mimosa era uma chácara, onde é o clube Primeiro de Maio e que se chamava Mimosa. E o clube comprou essa chácara e tinha um salão onde nós fizemos um palco. Depois, com o tempo, mais tarde, apareceu na TV Tupi o Showriso da Tupi, com um pouco mais de coincidência, apareceu um texto que a gente escrevia na nossa mesa. Não tinha jeito, mas um amigo nosso, que estava trabalhando na Tupi, ele levou algumas coisas.
Pergunta:
Vocês não ganharam nada com isso?
Resposta:
Nada. Naquela época, até hoje é difícil, mas naquela época era um grupo de pessoas que escreviam, sentados à mesa e escrevendo e saía o show. Os esquetes apareceram, anos depois, na TV Tupi. E o Ocara também era interessante. Depois trabalhei no Ocara. Tidinho Roco e Douglas Zanei que comandaram. O nome do Ocara era Ocara Show Graça. Goste muito desse nome. As pessoas que trabalhavam eram Petrin, Valdir Zuppardo, Zé Ricardo Poloni. Ali surgiu um grupo de música, The Botons, de São Caetano, que depois virou Botões, depois Snakes. Eles eram profissionais.
Pergunta:
A sua paixão por teatro é daí ou é anterior a isso?
Resposta:
Uma vez eu perguntei para a minha mãe porque eu fazia teatro. Ela falou que o meu avô escrevia, era autodidata também, e eu tinha uma prima que era bailarina, na década de 60, no Municipal do Rio, e tinha um primo da minha mãe, Ademar Paiva, que mora até hoje em Recife, que era radialista. Mas eu estou longe. Em Taubaté, no quintal tinha um paredão onde eu desenhei um palco na parede e fazia teatro na infância, cobrava fubeca, bolinha de gude. Teve uma época que minha mãe ia jogar fora um guarda-roupa e eu fiz um palco com ele. Já tinha alguma coisa. E tive uma grande sorte de em Santo André encontrar o Augusto Maciel. Esse foi o cara que revelou um monte de gente em Santo André e que era um entusiasta. E Santo André foi esse caminho que peguei certinho. Aliás, eu fazia teatro amador, batia no peito dizendo que dessa água nunca beberei, falava que teatro amador que era, que jamais iria fazer teatro profissional. De repente surgiu o Grupo de Teatro da Cidade e chamaram a Sílvia Borges e eu e a Sílvia tínhamos acabado de fazer uma peça, O Santo Milagroso. Ela fazia a Terezinha e eu fazia o Dito. A gente tinha acabado de fazer esse espetáculo e chamaram a Sílvia para fazer Jorge Dam Dam. Eu fiquei enciumado. Você vai fazer teatro com esses veados, esses caras que saíram da EAD? Era um preconceito, porque eu sou da geração de 1945 e posso me desculpar pelo meu preconceito. E de repente me chamaram e quando percebi estava fazendo teatro com os veados, como os chamava. E foi legal. Participei da fundação do grupo e daí nunca mais parei de fazer teatro profissional. Era teatro profissional, mas era com um grupo, fora da capital. Quando percebi, não dava mais para segurar o grupo e estava fazendo teatro profissional e há 40 anos estou como profissional e eu batia no peito falando que era do teatro amador. Isso vem na seqüência e é difícil, para quem gosta, se manter longe.
Pergunta:
Você fez parte do Jorge Dam Dam, com a direção da Heleni Guariba. Como foi o contato com ela? Fale um pouco sobre o espetáculo e como foi o contato com a diretora Heleni Guariba?
Resposta:
A Heleni dirigia o espetáculo e eu fazia uma coisa pequena na peça. Eu fazia um camponês, era uma figuração praticamente, então eu não tive o contato com ela diretamente, como diretora comigo. Ela dirigia o espetáculo. Mas era uma pessoa muito engraçada e elétrica, criativa, e que vibrava com cada coisa que ela via, que era legal. Uma pessoa engraçada, mas eu não tinha muito contato. Quem mais tinha contato eram as pessoas que tinham os papéis mais importantes. A gente continuou com uma amizade e eu encontrava com ela muito na casa da Silvinha, quando ela partiu para a clandestinidade, mas não tive muita amizade. O contato que tive com ela era em relação ao grupo, no teatro e na casa de amigos comuns. Não tive, infelizmente, um contato mais próximo com a Heleni. Eu a achava um barato, porque na inauguração do Teatro Municipal de Santo André, naquele saguão, ela queria... A gente chegou a fazer a leitura da Ópera dos Três Vinténs. Ela queria montar essa ópera na inauguração do teatro, ela queria os mendigos espalhados pelo saguão, e as mulheres de casacos de pele vindo para a inauguração do teatro. Lembro que o Muller Paiva falou, não lembro as palavras, mas que isso não ia dar certo. Isso era em 1971 e não dava para fazer esse espetáculo com essa visualização que a Heleni tinha do espetáculo, espalhar mendigo, e a peça não ia ser liberada. Por esses motivos não foi montada. O Pereio ia fazer o Mark Navalha, a Sônia Braga ia fazer, não me lembro o nome da personagem. As últimas vezes que a vi foi na casa da Sílvia, que ela chegava, se trocava e saía, toda esbaforida. Ela já estava participando dos movimentos que havia, e a última vez que a vi, lembro bem a imagem dela se trocando na casa da Sílvia, era aquela coisa de se trocar rápido porque ela já estava sendo perseguida, na Rua Santo Antônio, em frente ao Bar do Zé. O Natal e a Sílvia eram casados e a Heleni estava passando um tempo lá.
Pergunta:
Fale um pouco desse período da ditadura, se os grupos sentiram, se você sentiu essa questão da ditadura, da censura?
Resposta:
O GTC teve um problema grave com a censura em 1973. Era um período horrível, mas tinha momentos em que a gente se divertia com os censores. Era a única coisa que a gente fazia, volta do cipó, era debochar dos censores, porque eles vinham e a gente fazia coisas absurdas em cena, omitia coisas, ou em algum texto a gente não dava a firmeza necessária, amolecia um pouco, amenizava. Era ridículo você entrar no camarim, pôr o figurino, se aquecer e entrar em cena e olhar na platéia e ver um idiota olhando. Quando a gente entrava em cena, a gente se divertia entre a gente, porque senão, não dava para continuar a peça. A única coisa divertida, se é que se pode chamar assim, era esse momento. Agora, em geral não tivemos grandes problemas com a censura pelo fato de nós montarmos Molière, Goldoni, e quando a gente tentou, em 1973, com a experiência que a gente tinha, no Evangelho de Zebedeu a gente não teve problema, achávamos que ia ter, mas não teve. Nós fomos para a Colômbia e de lá a gente veio entusiasmado com o que estava acontecendo lá, liberdade total, peças do México, Uruguai, Paraguai, peças de toda América Latina e Europa, e tivemos contato com Henrique Buenaventura em Cali. Quando o grupo voltou para Santo André, se pensou em montar A Heróica Pancada que não vi ainda no país, e vai ser muito difícil ver, um grupo com um diretor-geral, Silnei Siqueira, diretor musical era o Murilo Alvarenga, a coreógrafa era Júlia Otero, o escritor Carlos Queirós Teles e o elenco, todos trabalhando juntos. O elenco pesquisava, o Carlos Queirós Teles passava para o papel, e isso tudo enquanto havia também um período de pesquisa, trabalho de voz, de corpo. Eu tive um período que estava meio fora disso porque fui para a Europa com o César Vieira, para fazer um Rei Momo na Polônia, em um festival, e me afastei um período, mas voltei e retomei. A peça foi um trabalho de pesquisa, um trabalho lindo que ia ser um trabalho onde ia crescer todo mundo junto, o autor, o diretor, o coreógrafo, o músico, os atores. Estava pronto e ia ser uma coisa muito bonita. De repente o texto foi para a censura. Nós estávamos na Fundação das Artes, em São Caetano, me lembro desse dia, o Zé Armando ou o Petrin, alguém entrou com o texto na mão com aquele carimbo de censurado em todo o território nacional. A gente viu as caras das pessoas e era uma desilusão, tiraram o chão da gente. Eu sempre lembro dessa censura e do Cláudio Cantana. Eu vejo a cara dele, que os olhos dele viraram quando ele viu o resultado da censura. Se não foi só isso, isso ajudou muito na despirocação dele, infelizmente, porque era um grande ator.
Pergunta:
Fale um pouco de como aconteceu esse convite para ir para a Colômbia? Quem possibilitou esse contato com o festival, como foi a ida, a volta, e aquele caso com a Gabi?
Resposta:
Foi uma coisa marcante para mim. O Fagundes fazia o Antônio Conselheiro e eu fazia o outro personagem. Era uma trupe circense montando a Guerra de Canudos. Os donos do circo eram os professores e eu fazia um dos donos, que era um ponto, que ficava falando o que o ator tinha de falar. Era a metáfora da censura. A gente tentava um pouco driblar. E o Fagundes teve um convite, acho que através do César Vieira, não me lembro muito bem porque nunca participei da parte administrativa e sempre gostava de ir para o palco. Hoje me arrependo porque não consigo fazer as coisas e hoje tudo tem de ser... Bom, a peça foi convidada para ir para a Colômbia. Os convites eu não sei como foram feitos, mas foi através do César Vieira. Nós fomos para Manizales. Eu substituí o Fagundes por uma semana e dois dias antes, a gente iria para Buenos Aires de ônibus e de lá íamos pegar um avião fretado, com os grupos do Uruguai, Paraguai, Argentina, e alguns grupos de lá iam direto para Pereira, uma cidade perto de Manizales. Meu pai faleceu dois dias antes, e foi uma loucura. Eu fui ao enterro de meu pai e peguei um avião, tanto que todo mundo foi antes e eu acabei indo, na véspera. Eu acabei indo de avião e aconteceu uma história engraçada. O problema de atrasar para chegar ao festival, a ansiedade para chegar, o falecimento de meu pai, eu peguei o avião e quando a gente percebeu, estávamos eu e Murilo Alvarenga juntos. O Murilo também não pôde ir antes. A gente estava em Porto Alegre, porque a gente ia se encontrar com o pessoal no dia seguinte. O avião parou no Aeroporto Salgado Filho e não ia mais. Como não vai? Sei que a gente ficou uma hora e meia no aeroporto, e eu gritava dentro do aeroporto, isso em 1973. Daqui a pouco veio um cara e falou que era agente. Era obrigação eu viajar, porque minha passagem era para Buenos Aires. O cara era agente secreto, é polícia. O Murilo me arrancou de lá e acabamos achando um vôo para Montevidéu e nós acabamos chegando a tempo.
Pergunta:
Quem foi com vocês para lá, além dele, do grupo?
Resposta:
O Murilo, que era diretor musical, César Vieira, Silnei Siqueira, a mulher dele, Gabriela Rabelo, Celso Frateschi e Denise Del Vecchio, que eram casados na época, Sônia Guedes, Cláudio Campana, Marici Bonafé, Ana Lúcia Miranda. Era muita gente.
Pergunta:
O Petrin não foi?
Resposta:
Não. Ele não estava.
Pergunta:
Foi lá nesse festival que durante a representação a platéia vaiou?
Resposta:
No dia da nossa apresentação, no Teatro Municipal de Manizales, ia ter apresentação do GTC e de vários grupos, todos fazendo uma peça politicamente correta para a gente, aquele festival fervendo e antes de começar o espetáculo toca o Hino Nacional. A platéia começou a vaiar e a gente ficou apavorado. Foi quando a gente se deu conta que o Brasil, naquela época, era tido como um país capitalista, um país opressor, como eram os americanos. Foi uma tensão. A gente estava com a bola cheia e de repente tem vaia? E começou o espetáculo, ganhamos e o público viu que era um grupo do Brasil, que não tinha nada a ver com a ditadura que estava no Brasil. Isso foi bem legal. A gente saía do teatro e ia todo mundo para algum restaurante ou botequim para conversar com outros grupos. Um dia a gente estava tomando cerveja, eu, Cláudio Campana e mais uma pessoa que não lembro quem era, e eu saí cedo. Eu fui ao caixa, paguei e fui embora. Quando estava perto do restaurante, numas ruas estreitas, veio um soldado, um policial e um garçom correndo atrás de mim, falando que eu não paguei. Voltamos lá e falaram que eu paguei. Voltei para o soldado e falei: A mi, no me gusta la policia. Saí na rua e comecei a virar cambalhota. Quando vou falar isso no Brasil?! Isso ficou muito marcado. Para mim foi um desabafo. Também teve a volta. Tive de voltar de avião e o pessoal veio de ônibus, porque o Edval Pivetta e o César Vieira já tinham me convidado a entrar no grupo Olho Vivo, para ir para a Europa. Eu e a Gabi viemos de avião. Eu tinha comprado livros, coisas interessantes, cartazes do Torquemada do Boal, fotos de Che Guevara, aquelas coisas que não tinham no Brasil. A gente estava com tudo aquilo e de repente a gente percebeu que não podíamos levar isso. Lembro que entrei com alguma coisa escondida na bota, um folheto, uma besteirinha, mas era o medo de entrar no país com um livro e era a mesma coisa de estar com um míssil. A gente teve de se desfazer dessas coisas todas.
Pergunta:
Quem pagou a viagem do grupo?
Resposta:
Boa pergunta. Acho que foi o festival.
Pergunta:
Quem organizou o festival?
Resposta:
Esse festival é da Colômbia. Acontece há anos. Não sei se ainda acontece em Manizales. Era muito interessante, porque tinha grupos polonês, italiano, russo e espanhol; do mundo inteiro. Até pouco tempo eu ouvia falar do festival de Manizales, mas faz tempo que não ouço.
Pergunta:
Vocês foram representar o Brasil?
Resposta:
Não fomos oficialmente, mas foi um grupo apresentando um espetáculo do Brasil. Não sei por que tocaram o Hino Nacional antes.
Pergunta:
Fale um pouco sobre a ajuda que a Prefeitura dava ao GTC e um pouco sobre a figura do Muller de Paiva.
Resposta:
Quando se fala da ajuda que a Prefeitura dava, tem de se falar em Muller Paiva. O Muller foi o grande incentivador do teatro em Santo André. Sem ele não existiria o Grupo de Teatro da Cidade, porque era muito difícil, nessa época, você ter contatos em órgãos do governo, qualquer que seja, em Prefeituras, Governos ou Presidência, principalmente par fazer teatro. Teatro, faz teatro? O que se tinha era essa visão. O Muller Paiva era um canal nosso. Ele tinha, exercia o poder da grana, que era a subvenção que a gente recebia. Graças a esse contato com o Muller Paiva através da Secretaria da Cultura, onde ele era diretor, a gente conseguia fazer espetáculos contratando atores em São Paulo. A gente contratava e nenhum ator que a gente contratava recebia mais que alguém do grupo. Todos no grupo recebiam igualmente. Se fosse chamado Antônio Fagundes, Cláudio Corrêa e Castro, todos que vieram, não recebiam mais do que a gente. Todos eram tratados como estrelas e também não existia isso nessa fase, essa coisa de estrela. O Fagundes já tinha feito novela, mas não era um ator de teatro, como Cláudio Corrêa e Castro. A subvenção permitia que a gente cobrasse preços super populares para a estudantada, para a garotada, e permitia que a gente contratasse atores e diretores fora do grupo, porque isso trazia mais experiência para nós e que permitia fazer, como O Evangelho Segundo Zebedeu, com vinte e tantas pessoas contratadas, no palco, fora as pessoas de fora do palco. Aleijadinho tinha de 17 a 20 pessoas; A Guerra do Caça Cavalo também tinha muita gente. O GTC contratava muita gente. O grupo tinha 8 pessoas. Isso graças à subvenção que a gente tinha da Prefeitura e que a gente cobrava ingressos, que também colaborava, porque era muita gente que vinha. Isso também eu faço questão de comentar, que a gente tinha um professor de química que levava os alunos ao teatro. Hoje um professor de português fala que o aluno não gosta de teatro. Não é culpa dele, mas é porque ele recebe mal, ele dá aula de manhã, de tarde e à noite, volta de trem corrigindo provas, como já vi. E ele vai ter tempo, paciência e assumir uma responsabilidade de pegar 50 alunos para levar ao teatro? Tem tudo isso que está prejudicando o teatro. O teatro é cada vez mais elitizado porque não está se formando um público como o GTC formava. Tanto que em Santo André grandes espetáculos estrearam nacionalmente, em Santo André, porque o GTC formou um público. Esse público não se forma de uma hora para outra, se forma com o estudante de 12 a 20 anos, que ia, e a gente fazia peças infantis que pegavam a garotada pequena, até 12 anos. Essa garotada, eu tenho sobrinhas com quarenta e poucos anos, que lembram de todas as peças que eu fiz, não porque ela foi ver o tio, mas porque ela foi com o colégio. Em qualquer escola, íamos a qualquer escola e falávamos do espetáculo do GTC e não precisávamos falar como era o espetáculo, não precisávamos fazer um preâmbulo sobre o autor. O GTC já tinha portas abertas. Infelizmente isso acabou, porque foi em 1976 a última peça, que foi praticamente sem subvenção. A gente conseguiu alguma coisa, quase não se faz e graças ao empurrão do Petrin, que levantou, a gente fez a última peça.
Pergunta:
Nisso o Muller já não estava mais lá?
Resposta:
O Muller já tinha saído. Foi o Muller Paiva que segurou as pontas, como diretor da Secretaria da Cultura de Santo André.
Pergunta:
Vivia-se de teatro nesse período do GTC? Ganhava-se dinheiro?
Resposta:
Ganhava bem. Eu era um garotão e a gente ganhava bem. Eu lembro que a gente fazia A Guerra do Caça Cavalo, em 1971 e durante o dia a gente fazia um espetáculo infantil chamado Pop, Garota Legal, com a Gabi, a Sílvia Borges, a Sônia Guedes, o Mané Andrade, que faleceu, Luiz Carlos Parreiras, que está morando em São Caetano e eu e mais Oslei Delano, com direção do Ronaldo Zambroni. Era uma peça infantil que a gente fazia, dois espetáculos de manhã e três à tarde e A Guerra do Caça Cavalo à noite. Chegava seis e meia da tarde, a gente estava dividindo a grana, um bolo de dinheiro; a Sílvia que fazia a divisão na hora, já pegava parte do autor, que não passava nem pelo SBAT, ela já levava na bolsa e entregava. Um dia o Cláudio Corrêa e Castro chegou, ele chegava muito cedo ao teatro, ele saía da Tupi, ele tinha um Dodge e ia direto para o teatro. Ele chegava cedo e num dia ele viu a gente distribuindo a grana. Ele falou: Vou largar a televisão e vou fazer teatro infantil. Além de fazer o espetáculo à noite, também fazíamos teatro infantil durante o dia, que era uma loucura. A gente acordava de madrugada para ir ao teatro. Era estranho, oito horas da manhã, fazer um espetáculo. Mas, independente de só fazer peça infantil ou só peça adulta, ou as duas, quem fazia só adulto também ganhava bem.
Pergunta:
Você então não tinha outro emprego? Vivia só do teatro?
Resposta:
Eu sempre fui assim. Eu larguei tudo. Em Santo André, quando comecei a fazer teatro amador, eu já estava largando tudo. Eu trabalhei numa loja de calçados, na Casa Veronezi, que foi meu primeiro emprego, aos 15 anos de idade, mas para mim era muito esquisito trabalhar numa loja. De repente eu fui trabalhar num escritório de contabilidade do Sr. Casemiro e desse escritório eu fui para o banco. Quando entrei no Banco da Lavoura de Minas Gerais meus pais ficaram felizes. Naquele tempo entrava como contínuo e saía como gerente, era uma carreira. Mas eu chutava tudo para o alto, trabalhava como contínuo, que hoje se chama office-boy, e naquela época entregava todos os documentos do banco. Era nota promissória paga, cheque devolvido, aviso de vencimento e eu andava de bicicleta, então eu malhava de manhã, entregava todas as coisas importantes, porque aviso de vencimento tinham dois ou três, até quatro avisos e eu só entregava um e era onde eu ganhava meu espaço para fazer teatro amador no Primeiro de Maio.
Pergunta:
Havia mulheres trabalhando como atriz. Você se lembra de algum episódio, ou de ser corrente o preconceito em relação à mulher atriz?
Resposta:
Claro. Eu citei a história do tudo veado, quando chamaram a Sílvia, mas era um preconceito que existia, ainda mais com a mulher. Parece muito tempo, mas para mim foi ontem. Com a mulher também era muito mais difícil. E homem, os grupos, os amigos de Santo André, sentia na carne. Estou falando da mulher, porque generaliza o preconceito. Assim como havia o preconceito comigo, os amigos normais do dia-a-dia, imagina com a mulher! Os pais deviam ficar malucos. E mulher que fazia teatro era puta. Vou contar um caso mais para frente. No Teatro Paiol, o Perri Sales estava casado com a Vera Fischer e a Vera ia ao Paiol e na casa onde eu morava o dono da imobiliária um dia vira para mim, ele foi ver o espetáculo e viu a Vera Fischer lá e ele falou: E a Vera, como é, não tem sorteio? Existia um papo que existia um sorteio para ter uma noite com a atriz. Esse papo rolava e generalizava, era qualquer nota, atriz era puta. Era assim. O cara de fora sempre perguntava: E a fulaninha como é? O preconceito era pesado. Assim como eu mostrei o meu.
Pergunta:
Vocês tinham por hábito freqüentar as famílias? Esses grupos de atores se freqüentavam além do grupo?
Resposta:
Sim. A gente freqüentava. Também era tempo integral. A gente ia para casa e encontrava a família durante a manhã, almoçava e depois ia para o teatro. Saía do teatro, na madrugada, e ia jantar. E as amizades eram assim, e que se mantêm até hoje. Com algumas pessoas eu tive mais contato, como Sílvia, Petrin, Gabi, as pessoas que se encontram até hoje.
Pergunta:
Quando você ia até a casa dessas atrizes, os pais, os familiares, viam você como?
Resposta:
As atrizes com que tinha mais..., falando do GTC, que tinha mais amizade, a Gabi já morava, já era independente, morava sozinha. Tinha a Sílvia, que tinha o padrasto e a mãe dela, dona Ivone, que eram entusiastas do teatro. Ela era professora, diretora da escola que fica atrás do Teatro Conchita de Morais. A dona Ivone não tinha preconceito. A Rosinha era mulher do Petrin, e as outras que passavam eram recém-formadas da EAD. Eu não sentia de perto porque todas as atrizes, quando estavam independentes, já tinham chutado o pau da barraca. Mas, com certeza, devem ter sofrido anteriormente, como tem hoje.
Pergunta:
E os seus familiares, como reagiam à sua profissão?
Resposta:
A minha mãe adorava, ela via tudo que eu fazia. Meu pai, desde o princípio, teve um certo preconceito, no começo teve um pé atrás. Quando comecei com os shows no clube, a minha mãe ia a todos e olhava do lado para ver quem estava rindo do filho dela, para ver quem estava gostando. Meu pai não ia. Depois que ele começou a ir, quando comecei a fazer teatro profissional, ele começou a ir, mas ele tinha uma certa preocupação. Ele ficava meio ao largo, mas na época do teatro amador ele perguntava se estava pronto. A gente não era de uma família rica, meu pai era funcionário público, e ele às vezes me molhava a mão. O cabelo comprido ele não gostava muito, mas minha mãe adorava. Terminava o espetáculo, estava fazendo na Praça 14 Bis, no Teatro Pavilhão, fazendo A Farsa do Cangaceiro, e minha mãe estava lá e daqui a pouco, a minha irmã comentou que alguém na platéia comentou de mim, falou alguma coisa, e minha mãe falou: Quer que eu o apresente? Eles me esperaram no final do espetáculo, era um casal e ela: Olha Zé Henrique... Depois o casal falou que me acompanhava há muito tempo, aí a minha mãe se encheu. Já tinham me visto de Rei Momo, algumas coisas do GTC.
Pergunta:
Você chegou a constituir família?
Resposta:
Casei com a atriz Nara Gomes em 1977 e tivemos um filho que hoje tem 24 anos, Gabriel, mas eu e a Nara nos separamos em 1988 e fiquei um tempo solteiro e casei novamente e tivemos uma filha que hoje está com 11 anos, a Anita, linda. O Gabriel também é muito bonito. Eu me separei desse casamento e juro que não vou mais casar. Prometi para meus irmãos. Só citei dois casamentos em que tive filhos.
Pergunta:
Você acha que o teatro atrapalhou?
Resposta:
No primeiro casamento, eu tive um primeiro mas não conto, não tivemos filhos e foi o único no papel. No segundo casamento, com a Nara, ela era atriz e num período a gente trabalhava juntos, vinte e quatro horas do dia. Estava em casa, saía de casa para o teatro, saía do teatro discutindo o espetáculo, chegávamos em casa discutindo o espetáculo e isso é bom e não é bom. Então, aí tivemos o Gabriel, e filho pequeno, ela tinha de trabalhar e eu também e com quem fica o Gabriel? Ela ia trabalhar e eu ficava com o Gabriel, aí eu ia ela ficava. Mas e quando iam os dois? Alguém tinha de abrir mão e isso deve ter influenciado um pouco. Não foi o motivo. Eu questiono muito esse término, a gente não conversou suficientemente. A gente é muito amigo até hoje. O outro casamento não foi muito legal, ela não era atriz e só foi bom essa filha linda que tenho.
Pergunta:
Por que você acha que o GTC acabou?
Resposta:
Acabou porque não tinha sustentação, não tinha como a gente fazer para se sustentar. Na última peça a gente tentou, mas eu saí antes porque tinha sido chamado para fazer outra peça, que era uma grana legal e tive de sair, mas já não tinha grana. O que acabou com o GTC foi falta de subvenção, porque a gente estava viciado nisso. Talvez tenha sido até um erro nosso a gente estar sempre apoiado nessa subvenção. Pode ser isso. Não me arrisco a dizer que foi isso.
Pergunta:
Nós temos dois minutos para você deixar uma mensagem sobre o que você achar pertinente, para os seus futuros espectadores desta sua entrevista.
Resposta:
Eu comento muito essa história do GTC. Todo mundo reclama, a mesma ladainha, que não tem público, não tem público. Enquanto não se fizer um trabalho, qualquer coisa no mundo tem de ser feita pela base, trabalhar a base. Enquanto não se trabalhar o estudante, na escola, enquanto não tiver teatro na escola, cito o Américo Brasiliense que em 1968 tinha 12 grupos, tinha festival de teatro amador dentro do colégio, então eram vários grupos e isso forma um grupo. O teatro amador também está acabando e é uma formação de público. O GTC se sustentava, fazia grandes temporadas graças aos estudantes. E esse estudante virou o espectador do teatro, que continuou indo ao teatro lá em Santo André, e foi se acabando, porque ele envelhece, ele sai, ele casa, ele muda, e o que está vindo não está sendo trabalhado. Essa coisa, enquanto não incentivar o jovem a ir ao teatro, e as escolas não tiverem teatro dentro da escola, os professores, quando tiverem tempo, levarem alunos ao teatro, ou então trazer teatro às escolas, enquanto não fizerem isso, não adianta teorizar, não vai ter público, vai acabar o público, vai ficar aquele público elitizado, que lotam os grandes teatros nos shoppings de São Paulo, quando vem O Fantasma da Ópera, e outros grandes espetáculos, lindíssimos, que têm de ser vistos também, mas os outros espetáculos estão batendo a testa na parede; um monte de grupos fazendo trabalhos importantes que não conseguem sobreviver por causa do dinheiro que sustenta o ator. O público não vai porque não se forma público no Brasil, não se dá atenção ao teatro, a atenção que o teatro merece.